Na primeira e na segunda década dos anos 2000, o cenário pop brasileiro muitas vezes era caracterizado por letras mais convencionais e voltadas para temas mais generalizados, frequentemente explorando o amor romântico, festas e experiências cotidianas de uma maneira mais superficial. Letras eram muitas vezes concebidas para atrair um público amplo, sendo mais acessíveis e menos explícitas em relação às emoções e experiências pessoais.
Entretanto, a partir da segunda metade da década de 2010, houve uma tendência crescente em direção a letras mais cruas e intimistas no cenário pop. Artistas como Jão, que lançou seu primeiro single Dança pra mim em 2016, desafiaram essa norma ao incorporar elementos mais pessoais e introspectivos em suas músicas. Suas letras muitas vezes abordam temas como relacionamentos complicados, ansiedades e reflexões pessoais, oferecendo uma autenticidade e vulnerabilidade que antes não eram tão comuns no pop mainstream.
Jão no acústico de seu single Dança Pra mim, em 2016
Em seu single Álcool, lançado em 2018, o cantor do interior paulista já mostrou para o que veio: com uma autenticidade única no cenário musical, Jão cantava sobre o uso do álcool para se engrandecer, quando se sentia pequeno demais.
“Quero dizer que este álcool que desce me engrandece demais…”
Take do clipe de Álcool, dirigido por Gabriel Dietrich
Em Ressaca, single lançado junto de Álcool, Jão já iniciou sua carreira utilizando de algo que seria seu precedente nos anos pela frente: a intertextualidade entre suas canções; tendo, por fim, a ressaca como uma consequência direta do álcool. Ele canta sobre um amor caótico, mas que não o deixa ir embora.
“E agora eu não quero mais manter a minha paz
Eu gosto do caos que você me traz”
Take do clipe de Ressaca, dirigido por Gabriel Dietrich
Comparando as canções entre si, analisamos trechos que conversam nas composições:
“Eu não quero mais beber assim
Na esperança de te ter pra mim
No fim da noite, eu te chamo
E não quero mais ninguém” — Álcool
“Me diz em qual bar você vai estar
Como é que eu vou voltar pra casa
E de bar, em bar, qual o meu lugar?
Se eu me solto, você me arrasta” — Ressaca
Takes de Álcool e Ressaca, respectivamente
Nos versos dessas músicas, podemos ilustrar a ressaca como uma consequência dos sentimentos intensificados pelo álcool, levando o protagonista a chamar a pessoa amada no fim da noite. Como resultado, ele se encontra preso, sendo arrastado por essa pessoa em uma constante ressaca, procurando por ela de bar em bar, sem conseguir se sentir livre.
Em "Álcool", a metáfora surge como uma tentativa de se engrandecer, de ser corajoso, uma busca por fortaleza emocional que, ironicamente, acaba em uma ressaca, tanto física quanto emocional, conforme destacado em "Ressaca".
Quando Jão declara: "Eu não quero mais beber assim / Na esperança de te ter pra mim" em "Álcool", percebemos um grande desejo de conexão, de ter a pessoa amada próxima. O chamado no "fim da noite" reflete essa ânsia por proximidade: "No fim da noite, eu te chamo / E não quero mais ninguém". Aqui, a intensidade emocional impulsionada pelo álcool desencadeia a busca pela pessoa amada.
Ao ingressarmos em "Ressaca", a história continua, revelando mais dessa busca incansável. Jão questiona: "Me diz em qual bar você vai estar / Como é que eu vou voltar pra casa?". Nesse ponto, o eu-lírico demonstra seu desespero, sem saber encontrar uma saída. Ele se sente preso, perseguindo a pessoa amada de bar em bar. A menção a se soltar e ser arrastado destaca a incapacidade de se libertar completamente desse ciclo emocional. Como consequência do álcool, uma metáfora da necessidade de algo maior para se engrandecer, o eu-lírico se arrasta em uma ressaca emocional, onde se encontra em um laço emocional que o engrandece, o machuca e o não o deixa ir embora.
Capa de Álcool e Ressaca, respectivamente
As capas dos singles também embasam essa teoria complementar. Em Álcool, Jão está em uma aparente festa com amigos, uma garrafa na mão. Na capa de Ressaca, ele está com a mesma roupa, porém dessa vez, o foco da capa é apenas em seu rosto machucado, o que representa o quanto ele se machucou por esse amor, como dito na teoria. Além disso, o abraço entre Jão e Pedro, presente na capa de Ressaca, enfatiza a dificuldade do protagonista em se libertar desse ciclo emocional. Mesmo ferido, ele permanece preso nesse vínculo, demonstrando uma complexa teia de emoções e relacionamentos.
Nesses versos, podemos observar uma jornada emocional intensa, em que o álcool desempenha um papel significativo ao desencadear sentimentos profundos. Isso resulta em uma busca incessante e uma ressaca emocional que mantém Jão imerso em uma relação que considerava tumultuada. A interligação dessas letras cria uma experiência imersiva, o que já é de praxe do cantor convidando os ouvintes a explorar as profundezas das emoções do cantor e a complexidade das relações humanas retratadas em suas músicas.
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